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O pós-colonialismo em Torto Arado - um exercício de cidadania

  • Foto do escritor: Bibiane Ferreira
    Bibiane Ferreira
  • 25 de fev. de 2023
  • 3 min de leitura

OBS: Contém Spoilers no último parágrafo!


O romance social Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, se insere duplamente no pós-colonialismo, teorizado por Thomas Bonnici em Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais, tanto na maneira que o autor escreve sua obra, quanto no enredo em que vivem suas personagens, revelando-se um tocante exemplo a ser seguido de descolonização literária.

Itamar Vieira Júnior escreve a partir de sua própria identidade social e local de fala, espelhando as vivências de suas personagens em seus antepassados e no cenário brasileiro que ainda existe em comunidades rurais e quilombolas esquecidas, ignoradas ou desconhecidas pelas civilizações de moldes europeus.

A linguagem de Torto Arado não é canônica, trazendo marcas da oralidade na maneira de narrar; além de utilizar termos, expressões e cenários próprios do interior baiano onde a história se passa. Portanto, alguns animais, ferramentas e até o exercício das práticas religiosas híbridas podem se tornar de difícil compreensão para quem está acostumado com um padrão universalizado de literatura.

Outro aspecto da narrativa de Itamar Vieira Júnior que vale ressaltar, é a riqueza de imagens poéticas, reflexões, contradições e dualidades: vontade de esquecer o passado sofrido, medo e fascínio, sonho e destino, desejo e proibição, exploração e servidão, fertilidade e infertilidade... Mas talvez a principal metáfora seja a perda da língua, mutilação sofrida por Belonísia logo no início do livro, o que representa o sujeito oprimido sem voz, com essa capacidade de manifestação suprimida e todas suas origens também silenciadas.

Os três capítulos de Torto Arado são narrados por perspectivas femininas autênticas, demonstrando fortemente uma das características do pós-colonialismo de destacar a força da mulher (comparada no livro à força da natureza) que luta por sua dupla liberdade: colonizadas e violentadas tanto por uma sociedade dominadora quanto pela figura masculina.

O processo de descolonização das protagonistas se dá aos poucos e de maneiras distintas. Mas ambas, primeiramente, tomam consciência política de que aquele sistema de escravidão não está correto, de que o povo preto de Água Negra não é inferior aos supostos donos da terra e que por isso devem se opor e resistir às desigualdades e preconceitos. Depois, com o sentimento de valorização da própria cultura e sabedoria, que acabaram sendo marginalizadas e vistas como primitivas, seja do cultivo da terra, da proximidade com a vida selvagem ou das manifestações de fé nas cerimônias de Jarê.

A imagem do colonizador e opressor branco é reforçada negativamente diversas vezes ao longo da trama, tanto que, no final da obra, quando Salomão é assassinado brutalmente pela entidade africana Santa Rita Pescadeira, sentimos um senso catártico de justiça se cumprindo, reforçando a ideia de Bonnici (1998, p. 14) de que a descolonização é um processo violento, definitivo e incessante. Embora seja, acima de tudo, necessário.


A trama de Torto Arado não é convencional, definitivamente não é o que nos ensinam nos cursos de Escrita Criativa de que uma história precisa ter o suspense da revelação, um plot twist que move todo o livro ou que deve ocorrer em um curto período de tempo. Vieira Júnior, além de contar os conflitos internos de Bibiana e Belonísia, também conta a história de Água Negra. Todos os caminhos nos levam até lá e é temos a sensação de que é impossível abandonar aquele lugar. A narrativa se estende por quase um século, e acompanhamos as vidas e as mortes dos moradores como se os conhecêssemos tão bem quanto os personagens se conhecem. Acompanhamos as fofocas e os rumores que rondam o cotidiano da comunidade, os casos de amor e traição dentro de uma mesma família, compadecemo-nos com a pobreza explícita nas descrições dos cenários e das casas, maravilhamo-nos com o misticismo sempre presente, e nos impressionamos com a capacidade de resiliência daquelas personagens.

O romance é um exercício de solidariedade social, além de ser um rico repertório cultural brasileiro, necessário para ampliar nossos conhecimentos, empatia e igualdade. Fácil de ler, prende o leitor com a fluidez de seus subcapítulos curtos, com a inocência de suas protagonistas, e com a evocação de sentimentos sufocados que imploram para serem comunicados.

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