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Amora e o lugar de fala na literatura brasileira

  • Foto do escritor: Bibiane Ferreira
    Bibiane Ferreira
  • 9 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 4 de jun. de 2024


O livro de contos Amora, publicado em 2015 pela Não Editora, concedeu à escritora gaúcha, Natália Borges Polesso, diversos prêmios como Jabuti e Açorianos, além de trazer consigo um sucesso de crítica.

Os 33 contos desta obra exploram relacionamentos humanos em microcosmos envolventes, destacados em recortes de vida de mais de 50 personagens lésbicas complexas, com idades e experiências distintas; e que passam ao leitor um amplo espectro de sentimentos.

A autora aborda, com maestria, diferentes pontos de vista e perspectivas, utilizando-se, para isso, de formas de narração alternadas e peculiares. A escrita de Amora se mostra inovadora não apenas por trazer uma temática pouco disponível e explorada no mercado, mas também por seu jeito próprio de expor essas histórias, com um encontro inusitado de palavras.

Na primeira parte do livro, “Grandes e sumarentas”, encontramos vinte e dois textos mais extensos, repletos de ironia, lirismo, deboche e humor; onde são apresentadas narrativas em terceira e primeira pessoa; exposições de diálogos em travessão, aspas, e até mesmo em e-mails; e diversos jogos de cena: contrapondo um e outro focalizador e objetos do cenário para constituir sentimentos contrastantes. Já a segunda parte de Amora, “Pequenas e ácidas”, são onze textos sucintos, apresentados em um tom quase confessional.

Apesar de ser um livro de literatura ficcional, como a própria autora afirma em entrevista: “Se tem alguma história minha no livro, no sentido de eu ter vivido? Não. Nenhuma. Sem tem algum fragmento de história que seja meu ali? Sim. Muitos. Todos.”; a obra pode ser, foi e ainda é utilizada para levantar uma bandeira militante dos direitos LGBTQ+. Apesar de todo o esforço de Natália em tratar suas personagens lésbicas de forma desmistificada, colocando em primeiro plano as relações afetivas e em segundo as relações homossexuais; ainda há muitas dificuldades em encarar este assunto com naturalidade (o que é expresso pelas próprias protagonistas dentro do livro).

Este é um livro de gênero, e por gênero quero dizer contos, mas também feminino. Contistas não são os mais procurados no mercado literário; e um livro de contos escrito por uma mulher, que aborda, dentre tantos outros assuntos poéticos e filosóficos, a temática lésbica é, sem dúvidas, um exemplo irrefutável do lugar de fala e representatividade na literatura brasileira.


Mas o que é lugar de fala?

Vamos a uma analogia para facilitar esse entendimento:

Todos sabem da importância e da dificuldade de se escalar uma montanha e têm direito de defender e admirar esse ato, porém não é como se todos os que defendem e admiram a escalada de uma montanha sejam alpinistas.

Também é possível que um helicóptero deixe uma pessoa lá no topo da montanha. Essa pessoa, mais do que ninguém, vai poder fotografar a vista e compartilhá-la com o mundo, a partir da visão do topo com seus próprios olhos. Porém, ainda assim, não serão alpinistas. Alpinistas são reconhecidos por serem alpinistas. Têm um lugar e um nome próprio designados a eles. Somente eles, além de terem o ponto de vista de cima da montanha, também têm a visão e a experiência de toda a escalada, passo a passo, pedra por pedra.

Ter um lugar de fala significa ter um ponto de vista considerando as experiências necessárias para se chegar até ele.


Djamila Ribeiro afirma que: "Lugar de fala não é impedir alguém de falar, é dizer que outra voz precisa falar”. Não é sobre restringir quem fala, mas sobre dar a oportunidade e o direito para que todos contem a própria história, sobre uma nova perspectiva. E é nesse contexto que Polesso nos diz que: “Eu não sei o que é uma literatura lésbica, nem posso defini-la. Como escritora e pensando no caso do Amora, o que me motivou foi a construção das personagens. Nesse sentido, acho que qualquer um pode fazer o exercício de alteridade que a literatura oferece. Se vai ser bom ou não, não posso julgar no geral. Mas com certeza vai depender da execução desse exercício, desse olhar e dessa compreensão do outro ou de onde o outro fala.”

Em Amora, o leitor é impulsionado pelos sentimentos que a literatura proporciona e consegue se relacionar com as histórias a partir das experiências de suas próprias vidas, mas também consegue imaginar aquilo que jamais vivenciara ou irá vivenciar. Amora expressa experiências coletivas e comuns dentro de um grupo que se entende como específico e não universal (mulheres lésbicas), mas que possuem o total direito de emitir voz. Mulheres que passaram e passam por situações semelhantes podem se identificar com os contos de Natália, e quem não está inserido diretamente nesse universo pode pensar criticamente no assunto, a partir do lugar que ocupa.

Acredito que desnaturalizar a opressão enraizada para com as minorias é um dos papéis importantes que a literatura proporciona. A partir da alteridade de nos colocarmos no lugar de personagens diferentes de nós mesmos, também começamos a entender as realidades fora da nossa bolha social. As escrivivências e os relatos autobiográficos fazem parte de um processo de visibilidade, até mesmo dentro da própria literatura Queer*, em que os registros de obras sobre as experiências lésbicas são minoritárias frente às de narrativas homossexuais masculinas.

Portanto, assim como a literatura de Polesso, que nos insere sem pudores ou tabus no “universo lésbico”, a escrita de Djamila Ribeiro nos coloca diretamente de frente às desigualdades raciais e sociais. Dessa forma, além de ser um exercício de ver além de nossos próprios horizontes limitados, a literatura, a representatividade e o lugar de fala das minorias, são questões éticas que não podem mais ser ignoradas.



Fontes para aprender mais sobre lugar de fala:



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