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Estacas, de George Saunders e as Teses sobre o conto, de Ricardo Piglia

  • Foto do escritor: Bibiane Ferreira
    Bibiane Ferreira
  • 9 de fev. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 26 de jan. de 2023


O conto Estacas, de George Saunders, é uma narrativa impecável e ambígua, além de exemplificar algumas das Teses sobre o conto, de Ricardo Piglia, ainda que não apresente todos os elementos apontados pelo teórico.

A primeira das teses de Piglia presente no conto nos diz que “a arte do contista consiste em cifrar a história 2 nos interstícios da história 1”, pelo fato de que somos inseridos na vida do narrador ao mesmo tempo em que ele conta pequenos fragmentos decisivos da vida de seu pai.

O narrador, ao expor, com amargura e indignação, o comportamento mesquinho do pai durante sua infância, já não deixa dúvidas sobre sua relação desagradável e tempestuosa com o homem que tem como figura paterna. Ao narrar, sem nenhum traço de afeto, as manias do pai com as estacas, deixa transparecer um tom enciumado que entrega seu próprio sentimento de rejeição. Conforme a obsessão de seu pai aumenta ao longo da narrativa, também aumenta o distanciamento do narrador com aquele velho homem: ao mesmo tempo que mostra o envelhecimento e a representação de sentimentos conturbados do pai, o narrador, em contrapartida, narra, quase que de forma imperceptível, seu crescimento e amadurecimento (sua primeira namorada, a saída da casa dos pais, a morte da mãe, a morte do pai, a venda da casa de infância e o desapego para com suas próprias memórias...).

Estacas condensa vidas inteiras em poucos parágrafos e une as duas narrativas como se fossem uma só, o que Piglia, em sua segunda tese, afirma ser uma das características do conto moderno.

Porém o que mais surpreende é que Estacas foge do modelo tradicional dos contos vindos de Poe, pois não nos revela nada extraordinário ou que desmonte as concepções estabelecidas previamente, quando chegamos ao final da história. A essa altura, tudo já está devidamente esclarecido e finalizado, porque o ponto chave desta narrativa não é o enredo com acontecimentos surpreendente, mas a capacidade de Saunders de criar personagens com características próprias, personalidades complexas e bem construídas, e de expor os vínculos entre elas, em muito pouco espaço para discorrer sobre.

Estacas não é apenas um conto que fala sobre um homem e seu elo com pedaços de ferro no quintal, do ponto de vista de seu filho; mas uma narrativa sobre família, passagem do tempo, mesquinharias, defeitos, arrependimentos, morte e, principalmente, solidão. O próprio narrador admite que, em certo momento, acaba se parecendo com o pai que tanto notara com desprezo velado ao longo dos anos. No entanto, apesar da atenção que dispõe observando o pai, ele nunca chega a compreender os hábitos do homem, nem sequer de considerar a possibilidade de que a razão de tudo aquilo fosse chamar atenção ou fugir do esquecimento.

George Saunders consegue proporcionar ao leitor reflexões preciosas sobre o que nos tornamos com o tempo, sobre nossas conexões com quem está ao nosso redor e aonde elas desaguarão um dia; tudo isso em apenas duas páginas, o que também demonstra, de forma visual, o quão rápida uma vida se passa, termina e continua – passando por cima de tudo que construímos e adoramos um dia, sem se importar com nossos arrependimentos e paixões de outrora.



Leia a seguir o conto original de Saunders e uma adaptação, escrita por mim, a partir do ponto de vista do vizinho da frente, e perceba como a mesma história pode mudar completamente apenas com a troca de narrador e, consequentemente, de ponto de vista:



                       Estacas - George Saunders

      Todos os anos, na noite de Ação de Graças íamos atrás de Papai quando ele arrastava a roupa de Papai Noel para fora e a vestia numa espécie de crucifixo que tinha feito com canos de metal no quintal. Na semana do Super Bowl o poste era vestido com um uniforme de futebol americano e o capacete de Rod, e Rod tinha que se entender com Papai se quisesse tirar o capacete dali. No Dia da Independência o poste era o Tio Sam; no Dia dos Veteranos, um soldado; no Halloween, um fantasma. O poste era a única concessão de Papai à diversão. Só podíamos tirar um giz de cera da caixa de cada vez. Numa noite de Natal ele gritou com Kimmie porque ela desperdiçou uma fatia de maçã. Ele nos vigiava enquanto despejávamos ketchup na comida, dizendo, Já chega já chega já chega. As festas de aniversário consistiam de cupcakes, sem sorvete. A primeira vez que levei uma namorada em casa ela disse, Qual é a do seu pai com aquele poste de metal?, e eu fiquei em silêncio, piscando.
      Saímos de casa, casamos, tivemos nossos próprios filhos, descobrimos as sementes da mesquinhez também dentro de nós. Papai começou a vestir os canos com mais complexidade e uma lógica menos discernível. Cobria-os com algum tipo de pele animal no Dia da Marmota e levava para fora um holofote para produzir uma sombra. Quando um terremoto atingiu o Chile ele deitou o poste de lado e pintou com spray uma fenda na terra. Mamãe morreu e ele vestiu o poste como a Morte, pendurando na barra transversal fotos de Mamãe quando bebê. A gente passava por ali e encontrava em redor da base estranhos amuletos da juventude dele: medalhas militares, ingressos de teatro, velhos abrigos de moletom, bisnagas de maquiagem de Mamãe. Num outono ele pintou o poste de amarelo-escuro. Cobriu-o com cotonetes, para agasalhar, e propiciou-lhe uma prole fincando pelo quintal seis cruzes feitas de estacas. Estendeu um barbante entre o poste e as estacas, colando com fita adesiva nesse varal cartas com pedidos de perdão, admissões de erro, apelos por compreensão, tudo escrito com letra convulsa em fichas de arquivo. Pintou um cartaz que dizia AMOR e pendurou-o no poste, e outro que dizia PERDÃO? e depois morreu no corredor com o rádio ligado e vendemos a casa para um jovem casal que arrancou o poste e deixou-o na beira da calçada no dia do lixo pesado.


					Vizinho da frente - Bibiane Ferreira
	
	Os novos vizinhos fazem a mudança para a casa da frente. O filho do antigo vizinho paira no meio-fio, analisando a estaca no lixo com ar de superioridade, deve se sentir vitorioso. Ele sempre foi um baita de um filho da puta, a fruta podre da família.
	Quando era pequeno despejava rios de ketchup na comida só para provocar o pai, esmagava giz de cera pela casa toda e detestava sorvete só porque a mãe adorava. Fazia de tudo para tirar qualquer um do sério.
	A mãe era uma coitada que trabalhava o dia todo e quase não dizia uma palavra, sempre cansada. O pai era autista, não tinha muitos amigos além de mim, e sempre tomara conta das crianças.
	Kimmie, a filha mais nova, era um doce, e a única travessura que fazia era jogar fatias de maçã no quintal para que “os pássaros não ficassem com fome”.
	Meu amigo demonstrava seu amor de forma diferente e muito criativa: enfeitava um poste de metal para alegrar as crianças. Lembro que na semana do Super Bowl ele pedia meu capacete emprestado. Eu fingia achar besteira, mas na verdade achava toda aquela estranha arte espetacular. A pequena Kimmie também adorava aquilo, mas o garoto odiava. Eu pensava que ele só tinha vergonha do pai “esquisitão”, ou ciúmes da irmã.
	Todos tentávamos entender seu comportamento traiçoeiro até o dia em que Kimmie morreu.
	Os pais saíram para jantar e deixaram o filho tomando conta da irmã, mas quando voltaram, Kimmie estava morta ao pé da estaca. Havia comido algo de que tinha alergia ou sido envenenada. A polícia acreditou na alergia, mas soubemos a verdade quando o garoto apareceu, no dia seguinte, com a namorada para jantar, foi a uma festa e comemorou.
	A partir daquela noite fatídica, meu amigo nunca mais foi o mesmo. Cuidava daquele poste como se cuidasse da filha: passava horas e horas a enfeitá-lo e só vivia para aquilo.
	Quando o garoto foi embora de casa pensei que as coisas fossem melhorar, mas já era tarde demais. Três meses depois da saída do filho, a mulher morreu de um câncer repentino e meu velho amigo começou a mandar mensagens através da estaca. Contava sua história e a de sua mulher, com pedaços do passado e do amor que se foi. Eu era o único que entendia a sua dor.
	Antes de cometer suicídio na poltrona do corredor, ouvindo sua rádio preferida, ele escreveu um pedido de perdão a Kimmie, por não a ter salvado do irmão.
	Espero o monstro ir embora e atravesso a rua. Irei pelo menos encontrar algum canto da garagem para enfiar aquele pedaço de ferro enferrujado.




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